O Caso de Luciana Reis

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2007, Porto Alegre. 

O lilás do início da manhã refletia-se no rosto pálido de Luciana, anunciando que a madrugada já chegava ao fim. Enquanto ela andava por aquela estrada de terra cercada por uma mata selvagem, olhava para o céu à procura da suprema visão celestial: as estrelas da noite, com a lua já sem brilho e a luz do sol que começava a rabiscar no céu os teus raios.  

Andando, sem ter alguma razão em especial para isto, Luciana se deteve ao perceber que as folhas das árvores, todas elas, estavam orvalhadas com algo escuro. Percebeu-se observada por uma criatura de quase três metros de altura, que se aproximava. Corpulenta, com cheiro de raízes frescas e vinda das sombras das árvores. Tropeçou, assustada. 

“... a esquecer seu rosto de vez. E acho que é tão normal”. 

Tocava Kid Abelha em seu despertador de rádio relógio. Seis horas. “Que sonho estranho”, pensou ela, enquanto se levantava a caminho do banheiro.

Luciana tinha estudado enfermagem em sua cidade natal, Passo Fundo, ia começar um emprego como enfermeira em um asilo em Porto Alegre e agora estava em um ônibus a caminho de seu novo trabalho.

Luciana era uma moça comum, sem grandes ambições. Nunca sonhara fazer parte de qualquer coisa de importância. Apenas vivia, buscava estabilidade, para um dia se aposentar, e esperar a morte chegar. Quando criança, sonhava ser médica, ser Mulher-Maravilha, mas cresceu uma pessoa comum, que sequer era capaz de lembrar-se da própria infância. E vivia muito bem com isto.            

Lá no trabalho, procurou Ricardo, que seria seu superior. Ricardo era um rapaz não tão bonito, embora houvesse algo de impulsivo em seu jeito entusiasmado de falar que deixava Luciana tímida toda vez que lhe dirigia a palavra.            

- Venha. Hoje tu vai apenas me acompanhar. Amanhã tu acompanha Marina, e depois já te passo o que fazer, porque ela já terá saído na licença dela. – dizia ele enquanto andavam pelo corredor. Luciana torcia para que ele não reparasse que ela tinha um dente a mais na boca. Ela não gostava de sorrir, embora intimamente desejasse que ele a notasse.            

- E por onde vamos começar, Ricardo?           

- Pode me chamar de Rick.            

- Por onde começamos, Rick? – perguntou, desconfortável pela intimidade.           

- Pelo homem mais velho do mundo! – brincou ele, enquanto passavam por um corredor com muitos quartos. Luciana reparava a tinta fresca nas paredes, os móveis que se pareciam novos, e a decoração, por sinal, tinha certa sofisticação. – Você conhecerá o Sêu Luís.- Quantos anos tem o Sêu Luís? – perguntou Luciana, a enfermeira novata.

- Todos! – riu Ricardo. – Ele é uma pessoa agradável, mas estranho. Ninguém sabe a idade dele. Alias, não fale nenhuma bobagem. – e põe a mão na maçaneta. Vira a maçaneta para baixo e novamente olha parra Luciana. – Ou não fale coisa alguma, fique quieta.            

Abriu a porta. Um homem bem velho estava sentado na cama com um caderno no colo, rabiscando algo.
- Bom dia, Sêu Luís. O senhor dormiu bem?
- Sim, dormi como um uma criança, Ricardo.

- Esta aqui é Luciana. Ela vai ficar no lugar da Marina enquanto ela sai de licença maternidade.
- Seja bem vinda, querida. – disse o velho. Ele tinha uma voz gentil, e um ritmo cansado no jeito de falar.
- Obrigado, Senhor Luís. – disse ela, tímida.
A enfermeira se aproximou, curiosa e reparou. O velho era enrugado, mas tinha a pele lisa, parecia emborrachada, como um corpo embalsamado. Havia algo estranho, e ele olhou nos olhos dela. Seus olhos eram cinza, tomados por catarata, mas mesmo assim, ele os olhava nos olhos. A menina sentiu um calafrio. O velho sorriu.
- Um homem velho como eu se sente acanhado por ser observado por uma moça tão bonita.
- Luciana é novinha, tem 19 anos. – disse o enfermeiro. - Não tem muita cortesia. Mas tem boa vontade.

- Desculpe-me, senhor. – ela disse acanhada.
- Não se desculpe, querida. Algumas pessoas idosas ficam especialmente feias com o passar dos anos. – disse Sêu Luís, dando um sorriso que mais assustava do que descontraía.
Luciana se aproximou para tirar a pressão dele. Então ela viu uma coisa que a deixou surpresa. No pequeno caderno em que o paciente usava para rabiscar ideias, estavam escritos ideogramas japoneses, com desenhos estranhos. O velho, percebendo que a moça olhava para seu caderno, fechou-o com alguma discrição.
- O senhor que escreveu isso? – perguntou ela.
Ricardo olhou-a com censura.
- Sim. Acordei inspirado. – e então abriu o caderno e contemplou os rabiscos incompreensíveis e os acariciou com a ponta dos dedos. - Um poema, escrito em um estilo japonês ao qual não me lembro o nome, sobre um menino que não podia morrer.
Ela parou de olhar para o estetoscópio que usava para ouvir as pulsações do velho.
- Não podia morrer porque era imortal? Ou não podia morrer porque alguém precisava dele vivo? – perguntou Luciana, deixando a timidez de lado.
- Ainda não terminei de escrever. Mas pode ser uma coisa, ou outra. Ou até mesmo as duas.
O homem tinha pele morena, e entre os cabelos grisalhos, alguns fios negros sobreviventes do tempo. Ele não parecia de maneira alguma ter traços orientais que justificassem saber ler e escrever japonês. Certamente era um homem intelectual. Porque estava ali? Algo a fez imediatamente se desapegar da estranheza da aparência dele e se perguntar por que ele estaria ali. Pessoas inteligentes assim costumam ficar ricas. Luciana anotou a pressão dele, e saíram.
Assim que fecharam a porta, Ricardo se aproximou dela.
- Luciana, ele mesmo paga sua estadia, e ele não tem documentos. Ele fala várias línguas. Uns suspeitam que tenha sido nazista, outros que seja alguém com outros tipos de segredo. O fato é que ele é uma pessoa de quem nada se sabe. Então não faça perguntas. Não é gentil.
Uma semana depois, Luciana já estava feliz trabalhando no asilo, sentindo-se em casa. E aquela timidez que sentia por conversar com Ricardo desapareceu. Na verdade, ela passou a ser indiferente ao rapaz. Ela ficava ansiosa pelas pequenas oportunidades que surgiam para que pudesse conversar com o velho Luís. Não que ele parecera menos estranho, mas aquela estranheza de sua aparência talvez pudesse ser justamente um artifício moral, pensava ela. Pois numa primeira impressão tinha uma visão sinistra, mas com a convivência, descobria um ser humano com assuntos inacabáveis.
Ricardo sentia ciúmes.
Luís Mondego Valência, era como apresentava-se em seus registros.
- Mondego é espanhol, não é – perguntou Luciana.
- Sim, Luciana. Eu nasci na Espanha, não sei ao certo quando nem onde. Porque meus pais se mudaram pra Lisboa, e ali vivemos até que os dois morressem. – e pareceu surpreso consigo mesmo. - Antes que eu completasse 10 anos.
- Puxa vida. Eu perdi meu pai quando tinha 12 anos. Minha mãe morreu ano passado. Foi tão difícil. Mal posso imaginar em como deve ter sofrido. Tão novo. Morreram de quê?
- Foi no terremoto. Nunca encontrei o corpo deles. Todo mundo perdeu alguém aquele dia. – e calou-se. Seu olhar passou pelo piso, e subiu pelas paredes até parar na janela aberta. – Cresci criado em um mosteiro, até que vim para o Brasil, já adulto.
- Por isso o senhor gosta tanto de falar sobre religião? – ela perguntou, curiosa.
- É possível, minha querida. Na solidão da orfandade, encontrei paz na religião. Entre monges e padres. Foi bom. Cresci rodeado por pessoas afetuosas e sábias. Estimulado a entender a minha existência.
- E hoje o senhor é uma pessoa que vive bem, tem uma velhice tranquila e honesta. – disse ela, como uma neta orgulhosa de seu avô.
Ele a encarou com aqueles olhos que pareciam cegos.
- Nem tudo é o que parece, minha filha. Toda busca é justa, e algumas perguntas tem respostas que nos custam muito caro.
- Do que o senhor está falando?
- Ah, minha querida, da incessante busca do homem por entender a si mesmo. Eu gostaria de ter sido mais moderado, sabe? – e sorriu, aquele sorriso que antes parecia medonho e agora trazia a pureza daquele homem. – Descobrir, e me dar tempo de digerir cada novidade, com menos ansiedade. Hoje sou isto que sou, e estou exausto.
E segurou na mão dela. As mãos dele eram sempre frias.
- Não quero mais conversar. Pensei em coisas que havia esquecido, e não me lembrava de como me sentia grato por tê-las esquecido.
- Desculpe, Senhor Luís. Não quis magoá-lo.
Novamente um sorriso.
“Eu sei”.
Ela saiu, e fechou a porta do quarto dele. Ricardo a esperava lá fora. Parecia ansioso em dar-lhe uma notícia. Marina, a enfermeira contratada, retornaria no dia seguinte, e ela estava dispensada do trabalho. Aquele fora seu último dia no asilo.

Apenas quando chegou abriu a porta de sua casa que, por curiosidade, decidiu procurar na internet o que havia de histórias sobre terremotos em Portugal, e soube que o mais recente havia acontecido em 1969. Isso significaria que o senhor Luís deveria ter menos de cinquenta anos. Ela riu.
“Ninguém pode ser tão acabado assim.”
Ainda no assunto, descobriu outros “sismos” em solo português onde teriam morrido, nove, quarenta pessoas. Nenhum número que justificasse o “todo mundo perdeu alguém aquele dia”. Até que viu números nos terremotos de ocorridos em 1755 e 1531...
Abriu a calculadora do Windows XP, e fez suas contas. Permaneceu inexpressiva, calada, confusa como se o mundo tivesse parado de girar.
“Não, ninguém pode ser tão velho.”



Este conto é um fragmento do prólogo de "O menino que não podia morrer", romance que atualmente finalizo a revisão.

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